Projeto Editorial
BERGGASSE 19 - Revista de Psicanálise da SBPRP
Projeto Editorial 2º semestre de 2024 – “(DES)AMPARO”
[...] “Um menino chora na noite, atrás da parede, atrás da rua, longe um menino chora, em outra cidade talvez, talvez em outro mundo. E vejo a mão que levanta a colher, enquanto a outra sustenta a cabeça e vejo o fio oleoso que escorre pelo queixo do menino, escorre pela rua, escorre pela cidade (um fio apenas). E não há ninguém mais no mundo a não ser esse menino chorando."
(Carlos Drumond de Andrade in SENTIMENTO DO MUNDO)
Iniciamos os trabalhos de 2024 propondo reflexões “Sobre a arrogância “, seguindo com a investigação em curso chegamos ao nosso número 2, olhando agora em direção ao par indissociável da arrogância: o “(Des)amparo”.
A arrogância é um possível destino ou desfecho para o desamparo, quando o mesmo é insuportável, impossível... Bion (1957) coloca que algumas pessoas ao serem impedidas de empregar a identificação projetiva sofrem uma espécie de desastre psicológico pela destruição de uma vinculação importante, aqui o desastre do desamparo solitário que não podendo ser comunicado, torna-se intolerável. A identificação projetiva nessas situações não funciona como comunicação, como algo que vincule, mas como obstáculo à compreensão. Diante do desastre que destrói a possibilidade de estabelecimento do vínculo que possibilitaria o amparo, emerge a arrogância. O menino que chora e não encontra alguém que o escute, que tolere, suporte e dê sentido ao seu choro, se afoga no próprio grito desesperado.
Freud (1895/1996) em “Projeto para uma psicologia científica” propõe o desamparo como constituinte da psique humana, marca inicial do nascimento que promove o encontro com o meio provedor para sustentação da vida, é o próprio despertar para a vida. A partir da falta expressa nas necessidades básicas humanas torna-se possível o encontro com o humano do outro (do meio externo) que acolhe, e de si mesmo que se realiza na experiência do vínculo, o humano que se realiza na experiência de amparar e ser amparado.
“[...] e o desamparo inicial dos seres humanos é a fonte primordial de todos os motivos morais. Quando a pessoa que ajuda executa o trabalho da ação específica no mundo externo para o desamparado, este último fica em posição, por meio de dispositivos reflexos, de executar imediatamente no interior de seu corpo a atividade necessária para remover o estímulo endógeno. A totalidade do evento constitui então a experiência de satisfação, que tem as consequências mais radicais no desenvolvimento das funções do indivíduo” (Freud, 1895/1996, p. 370).
Tornar-se humano exige lidar com o trânsito desamparo-amparo<>desamparo-arrogância, como função primordial e constitutiva da mente. Demanda que se apresenta desde o nascer, mas se reedita a cada nova cesura, passagens próprias do desenvolvimento individual ou sócio-culturais. Desde aprender a falar até a entrada na escola ou no mercado de trabalho, desde a adolescência até a entrada na terceira idade, alcançando os fenômenos que ameaçam e nos desafiam como guerras, violência e catástrofes naturais.
A sala de análise, claro, espaço que se dispõe justamente como continente para tais vivências sem escapar dos elementos em jogo, desamparo, amparo, arrogância, estupidez, enfim a dança das pulsões de vida e morte, nos possibilita a proximidade e intimidade com os fenômenos que nos propomos a conhecer e transformar.
Acontecimentos históricos, culturais e sociais recentes de forte impacto global, se apresentam também na clínica individual, ouvimos e vivemos com nossos companheiros de trabalho/pacientes e também nós como pacientes o desamparo atual.
O desamparo pela Covid? Pelas guerras? Pela emergência climática? Situações que reeditam nosso desamparo constitutivo humano? Que intensificam o desamparo próprio da solidão da existência humana? De qual desamparo falamos? O universal? O de sempre, aquele que sempre existiu?
Entre o universal e o pessoal, constitui-se o encontro analítico, único, nosso precioso ofício. Um ato de fé naquilo que se pode gerar no “acontecimento” de um encontro.
No início do ano ouvimos Édipo em diálogo com Tirésias em nosso convite à escrita (acesse o link aqui: https://sbprp.com/2024/02/07/berggasse-19-projeto-editorial-2024-1o-semestre/).
[...] Édipo: "Mas, que dizes, afinal? Não te compreendo bem! Vamos? Repete tua acusação"!
Tirésias: "Afirmo que és tu o assassino que procura".
[...] Édipo: "Tu vives na treva.... Não poderias nunca ferir a mim ou a quem quer que viva em plena luz... Quem poderá suportar palavras tais? Vai-te daqui miserável! Retira-te, e não voltes mais.” (Édipo Rei, Sofócles)
Voltando ao Édipo, mesma citação trazida para propor reflexões sobre a “arrogância”, escutando novamente sua voz, o que ouvimos? Negação arrogante da verdade? Ou o desamparo frente à realidade insuportável? Como alcançar a realidade de si mesmo, como apresentar de maneira possível a verdade, realidade de cada um? Arrogante Édipo, arrogante Tirésias, desamparado Édipo, desamparado Tirésias, encontro impossível...
A partir destes estímulos, convidamos aos colegas e interessados a compartilhar através de nossa revista Berggasse 19, férteis reflexões que nos ajudem a desenvolver e melhorar os recursos clínicos psicanalíticos para lidar com (Des)amparo nas suas variadas dimensões.
Mantendo o compromisso com a pesquisa, investigação e publicação em psicanálise, afirmamos o nosso prazer em manter a interlocução na Revista Berggasse 19, aberta a todas as contribuições.
O prazo para o envio dos artigos que envolvam o tema se encerra no dia 16 de setembro de 2024.
Envie seu trabalho para o e-mail: berggasse@sbprp.com.br
Para acessar as normas de publicação acesse https://berggasse19.emnuvens.com.br
Conselho Editorial Berggasse 19
REFERÊNCIAS:
- Bion W. R. (2022). Arrogância. In No entanto... pensando melhor. (Trad. Paulo César Sandler). Blucher. (Trabalho original publicado em 1957).
- Freud S. (1996). Projeto para uma psicologia científica. In Edição standard das obras psicológicas completas de Sigmund Freud: Vol. 1. Publicações pré-psicanalíticas e esboços inéditos (1886-1889). (J. Salomão, Trad., pp 335-413). Imago. (Trabalho original publicado em 1895).